POR EDUARDO LOGULLO
FOTOS FERNANDO GUERRA
PROJETO OTO ARQUITECTOS

SOB O MAGMA


O projeto do OTO Arquitectos destruído pelo vulcão na Ilha do Fogo, Cabo Verde; uma parábola da transitoriedade da arquitetura


Cabo Verde, arquipélago composto por dez ilhas na costa africana; país independente desde a década de 70, ex-colônia portuguesa, antigo entreposto do tráfico de escravos, território quase esquecido do mundo, dez pequenos pontos escondidos no mapa-múndi, ilhas sobrevoadas na metade do trajeto aéreo das rotas internacionais entre Brasil e Europa, umbigo musical que gerou a grandiosa Cesária Évora. Um dos lugares mais interessantes do planeta. Ainda bem que poucos sabem disso. Ainda bem que continua complicado chegar lá.

Existem quatro pequeníssimos aeroportos internacionais para receber os visitantes: Ilhas do Sal e de Santiago (onde fica Praia, a capital cabo-verdiana), além de Boa Vista e São Vicente (inaugurados mais recentemente, em 2007 e 2009). Internamente, as ilhas são interligadas por linhas marítimas e aéreas. Mas ninguém pense que isto significa facilidade. Ou se enfrenta ondas e mar agitado, em barcos e ferries, que, digamos assim, provocam tremores e temores; ou se enfrenta ventos e turbulências em pequenos aviões das rotas internas. Dá medo? Sim. Mas viajar não seria também se aventurar? Ora, pois.

Cada ilha de Cabo Verde parece ter personalidade e atrações diferentes. Se for o caso de escolher umas quatro ou cinco para visitar, a indicação seria conhecer Santiago, Brava, Sal e Fogo. Se tiver que escolher apenas duas, Santiago e Fogo. Estive em cinco ilhas por duas semanas, alguns anos atrás. Lembranças que jamais saíram da memória: ritmos, pessoas, sotaques, idioma crioulo, português quase incompreensível, quadris sempre em movimento, mares, areias, ventos, água límpidas, sorrisos, calores, humores, frutas. Ouvir uma “morna” – termo local para as canções regionais de compassos mais lentos e letras românticas – é ser envolvido pelo halo de encanto de Cabo Verde. Meio inexplicável. Melhor assim.

E decidi conhecer a Ilha do Fogo, talvez a de formação geológica mais bela: o local surgiu da goela de um vulcão ainda ativo. Fogo resulta de magma, lava, petrificação das entranhas da Terra. Complicado chegar até lá. Há um sistema de ferries de Santiago-Fogo-Brava, e voos apenas a partir de Santiago. A aproximação da ilha já provoca impacto visual de magnitude rara: uma formação montanhosa, cônica, abrupta, escura e imponente no meio do Atlântico. O litoral rochoso deixa dúvidas sobre como será atracar a embarcação naquelas paredes de pedra vulcânica açoitadas pelo mar e pelo vento. Mas tudo acontece em uma saliência costeira adaptada como ponto de recepção de embarcações que trazem visitantes, cargas e mantimentos àquela ilha na qual se plantando, quase nada dá. Solos vulcânicos têm características geológicas moldadas na dureza e no silêncio da rocha que um dia foi triturada até voltar a ser rocha.



E foi na Ilha do Fogo que o escritório português de arquitetura OTO desenhou um projeto premiado, exatamente em Chã das Caldeiras – que vem a ser a própria caldeira, hoje delimitada como Parque Natural do Fogo, de um vulcão de 2829m de altura. A área era um baixio habitado havia 150 anos. Sua população sobrevivera a erupções anteriores, tornando-se um povo aparentemente imune a lavas e enxofres, isolada do restante da ilha e em condições precárias: sem sistema de água nem rede elétrica. Pareciam habitar outro planeta, como em uma ficção científica encravada em Cabo Verde.

O objetivo do escritório português, conta o arquiteto André Castro Santos, “Era criar um ponto de interesse no lugar, além de criar condições para a monitorização do vulcão e do Parque Natural”. Trabalharam dentro da caldeira de um vulcão e imaginavam riscos, embora desconhecessem as concretas chances de uma nova possível erupção. O financiador do projeto, uma joint venture de capital alemão e o Governo de Cabo Verde, sabia que vulcão não dava sinais de atividade há 15 anos. Supunha-se que a imensa goela de rocha negra estivesse apagada nas entranhas da Terra.

O edifício se formava em uma arquitetura mimética, pensando a inserção na paisagem: parecia emergir do chão como rocha vulcânica. “Nossa inspiração começou na estrada que atravessa Chã das Caldeiras que, por vezes, funde-se e, em outras, sobressai. Queríamos um edifício aberto e desenhamos esse misto de edificação com pátios que se fundiam na topografia natural do terreno; assim, qualquer pessoa poderia circular livremente pelo edifício mesmo quando estivesse fechado”, descreve André Castro.

Do o projeto à inauguração, foram sete anos cabalísticos – e demorados. Inicialmente eram apenas 300 m² e incluía apenas espaço para museu e salas de trabalho para os técnicos do Parque Natural do Fogo. Porém, os arquitetos quiseram incluir a população de Chã das Caldeiras. A população, além de isolada, não contava com equipamentos públicos de lazer ou entretenimento cultural. “Com o envolvimento da população no processo, o projeto passou a ter 1.000 m². Demorou três anos para surgir um novo financiamento. Em março de 2014 foi inaugurado”.


(Cesaria Evora – Petit Pays, 1994)



Entretanto, meses depois da inauguração, ocorreu o que ninguém contava: o vulcão tremou, rosnou, cuspiu fogo e vomitou lava. Uma erupção potente, trágica e assustadora, que dizimou aldeias inteiras e as plantações de uva – único meio de subsistência da população. A visão desoladora do edifício envolto por lava petrificada parecia uma parábola da transitoriedade da arquitetura. Nem toda construção tem garantia de permanência. A impermanência ronda todas as nossas ações, ideias, realizações, abstrações e concretizações? Possivelmente. “Sim”, diria o vulcão da Ilha do Fogo, em gargalhada sinistra que poucos ouviriam.

Mas o edifício do escritório OTO, apesar de destruído, ganhou visibilidade exatamente depois da erupção. Pela precisão do desenho e a relação com a paisagem, foi contemplado pelo ArchDaily Building of the Year Awards como melhor arquitetura cultural em 2015. A crônica da morte não anunciada tornou-se referência visionária. O edifício do Parque Natural da Ilha do Fogo hoje tem uma permanência surgida de sua existência transitória. Claro que essa história traz beleza, mistério e até a estranheza do senso de compreensão sobre a própria fugacidade da vida. Viva o ígneo. Viva o vulcão da Ilha do Fogo.




Eduardo Logullo,

jornalista, escritor e roteirista. Seu mais recente livro é Aracy de Almeida: não tem tradução (São Paulo: Veneta, 2015).


Fernando Guerra,

fotografo português especializado em arquitetura.


Oto Arquitetos,

escritório português dos sócios André Castro Santos, Miguel Ribeiro de Carvalho, Nuno Teixeira Martins e Ricardo Vicente, em Lisboa.