BRASÍLIA por REM KOOLHAAS

Texto inédito do arquiteto holandês sobre a cidade moderna


TEXTO REM KOOLHAAS

TRADUÇÃO ELINE OSTYN

REVISÃO & EDIÇÃO GABRIEL KOGAN & RODRIGO VILLELA

[Nota dos Editores: Escrito por Rem Koolhaas a partir de sua primeira viagem a Brasília em agosto de 2011, o texto a seguir permaneceu inédito. A Revista Centro traz agora duas versões (inglês e português) traduzidas diretamente do original em holandês. Além de um relato das impressões sobre a moderna capital brasileira, o artigo se releva uma narrativa autobiográfica das origens de sua relação com a arquitetura. A versão em inglês (ver aqui) foi traduzida por Bram van der Hout e usada para checagem dessa tradução para o português brasileiro]


 

Brasília


Não me lembro bem como encontrei, em 1956, uma matéria sobre a nova Brasília em uma edição da revista TIME. Eu tinha 11 anos. O artigo revelou a existência futura de uma cidade, exatamente no centro do país; um sonho de uma cidade que logo se tornaria realidade. Decidi naquele momento me tornar um arquiteto. Não somente um arquiteto, mas um arquiteto brasileiro.

Seguiram-se anos de esboços e desenvolvimento dessa ideia de emigrar para lá; um plano bastante ambicioso para um garoto do ginasial. Durante oito anos, no entanto, eu ignorei o impulso brasileiro. Tornei-me jornalista e co-escrevi roteiros de filmes. Até que um dia entendi com clareza esmagadora: é o arquiteto que determina os roteiros da vida cotidiana e que eu faria melhor por admitir a minha vocação anterior.

Entre 1956 – ano da edição da TIME – e 1968 aconteceu muita coisa. No meio disso, estudei arquitetura em Londres. A convenção que arquitetura é uma força criativa – lidando há mais de três mil anos – foi prejudicada pela dúvida e pelo flower power. Eu me tornei arquiteto no momento em que as fundações da arquitetura começaram a sucumbir.



1968


A geração de ‘1968’ iria libertar a humanidade, entre outros, da própria arquitetura. A cidade como ‘ideal’ modernista não era mais imaginável, não era nem mesmo mais sequer procurada. ‘Ordem’ era uma palavra suja, foi substituída por ‘auto-organização’. Utopias viraram contos de fadas sombrios, usados contra o idealismo incurável da arquitetura.

Pessoalmente, eu não participei dessa abdicação coletiva. Pelo contrário, decidi estudar o Muro de Berlim – concluído no mesmo ano de Brasília – para provar que a arquitetura ainda era poderosa, que podia dividir cidades e vidas em duas partes. Era uma prova na qual, naquele momento, ninguém se convenceu.

Quase cinquenta anos depois, eu estou aqui em Brasília, a primeira cidade que me fez pensar em fazer cidades. Desde 1972, procurei freneticamente descrever a situação nas cidades: Nova York, Atlanta, Lagos, Singapura, delta do Rio das Pérolas na China, mesmo Dubai; não como cidades ideais, mas, sobretudo, as qualidades incontroláveis que elas possuem. Eu não as examinei como moralista, mas como antropólogo: como arquiteto eu ferozmente teria condenado todas elas.

Mas agora não estou mais ‘ocupado’ com a cidade. Todo mundo sabe que o mundo está rapidamente se urbanizando, que a cidade clássica não existe mais, que nesse século as cidades com trinta milhões de habitantes serão consideradas normais e que a população se muda para longe do campo. Eu estou particularmente olhando para o quê essas pessoas deixaram para trás. O campo, a desconhecida linha de frente da mudança. Brasília, pela última vez, então uma cidade.



2011


O projeto para a cidade Brasília tem a forma de um avião, nas quais as asas apontam para a frente. A fuselagem do avião consiste de duas fileiras de cinco prédios idênticos, cada um com dez andares, um para cada ministério. As fileiras são separadas umas das outras por um corredor, uma faixa ampla e verde.

Na cauda fica o parlamento: duas fatias altas e uma plataforma sobre a qual uma cúpula – o Senado Federal – e um disco voador – a Câmara dos Deputados – estão pousados.

A faixa ampla e verde na frente do parlamento era, durante minha visita, um mar de bandeiras vermelhas e banners de camponeses cantando em agitação contra a corrupção e arbitrariedades.

Dentro do parlamento, outro grupo – de fazendeiros – igualmente numerosos, mas estes com camisetas verdes, eram recebidos sob a gloriososa bandeira do microcrédito.

As asas do mapa da cidade consistem de mais de 130 superquadras idênticas, terrenos quadrados contendo uma média de nove blocos de apartamentos residenciais organizados de forma ortogonal, todos diferentes, mas mesmo assim monótonos. Uma cidade de 1500 blocos de apartamentos.

Sartre veio para ver; a rainha Elizabeth, Fidel Castro, Che Guevara e Willem Sandberg também. Para Andre Malraux era um sinal de esperança; o Papa deu sua bênção, como, mais ou menos, quase todos os arquitetos modernos: Walter Gropius, Le Corbusier, Prouvé, Mies van der Rohe e Nervi.

Brasília foi concebida pelo Juscelino Kubitschek, presidente a partir de 1956 com um mandato de cinco anos, como em uma campanha militar. O ‘avião’ foi projetado em 15 dias por Lucio Costa com tinta e papel. A fuselagem foi equipada em quatro anos somente com prédios de Oscar Niemeyer. Niemeyer, com medo de aviões, viajou com um Land Rover através da terra selvagem entre a antiga capital do Rio e o futuro cento do governo. Brasília é uma quantidade excepcional de edifícios produzidos por um arquiteto em insanamente pouco tempo.

Sua pressa e urgência ainda são palpáveis, nenhum absurdo, nenhum detalhe desnecessário, nada supérfluo. Niemeyer não tinha escolha e é – talvez por isso – ainda um gênio.



Em uma linha


Muitas vezes a expressão ‘one-liner’ tem uma conotação negativa [Nota de Tradução: a palavra pode ter, por vezes, um sentido similar a ‘monossilábico’ em português; significa também uma frase sintética e afiada, como na expressão “resposta curta e grossa”]. Mas na arquitetura um croqui de uma linha única virou a prova mais confiável de genialidade. Esses ‘one-liners’ permanecem como a força de Niemeyer – ou trata-se de sua deficiência?

Dois prédios de Brasília intrigam: eles são polaridades opostas. A primeira é uma impiedosa linha, ligeiramente curvada, com comprimento de 700m, projetada como uma universidade (UNB). Todos os aspectos da aprendizagem e da pesquisa estão brilhantemente sintetizados nessa serpente infinita de concreto pré-fabricado.

Sua oposição absoluta é o Ministério das Relações Internacionais: neutro, um bloco indefinido, mas por dentro uma ‘boîte à miracle[Nota de Edição: Caixa dos Milágres, expressão usada por Le Corbusier em 1948 para descrever um espaço ao mesmo tempo aberto e fechado], estruturado como um labirinto tridimensional. Um palácio diplomático de meras sensações, às vezes desafiadoramente abstrato, outras vezes pesadamente decorativo – um mise-en-scène de meras aparências.

Para isto, Niemeyer teve ghostwriters: os conceitos e as sequencias dos interiores são orquestrados por um diplomata nato, o Ambaixador Vladimir Murtiho. Algumas salas são bonitas demais para seus visitantes frequentemente suspeitos; e tudo isso foi intencional.

Se comparada com Niemeyer, quase todas as outras arquiteturas parecem sombrias e desnecessariamente trabalhosas. Isso também se deve ao clima. Brasília, localizada em um planalto da savana brasileira, é uma cidade ao ar livre: durante todo o ano, as condições do ambiente externo são adequadas para as atividades internas. A arquitetura não é prejudicada pelas tarefas do Hemisfério Norte – manter o calor –, ou do Sul – esfriar. Uma membrana ultrafina, um único painel de vidro, é uma demarcação suficiente entre interior e exterior.



Por razões políticas, o ‘avião’ de Lucio Costa aterrou no centro exato do país. O objetivo era para desfazer o domínio da costa do Brasil, em favor do interior inexplorado. Parece paradoxal dizer que isto tenha sido bem-sucedido pelo fato de que este exemplo-último de planejamento intensivo – projetado para 500.000 habitantes – agora se encontra cercado por uma cidade sem fim, com 3.5 milhões de habitantes, estabelecida de acordo com a receita sem forma da economia de mercado.

O ‘avião’ exemplar simplesmente se tornou não mais que um bairro, incorporado em quilômetros quadrados de cidade genérica. Assim, a primeira impressão ao ver a planta não é a natureza autoritária, mas sim a vulnerabilidade da arquitetura moderna…

A gigantesca brutalidade do poder político empregada na realização de Brasília sucumbe ao poder ainda mais implacável do Mercado-Tsunami. Inchando desde os anos 80, o ‘mercado’ desmascara a encenação frágil de um show político como o de Brasília. Não importa quão autoritária a antiga Brasília pareça se vista de cima, o regime do mercado sempre se sobreporá, ainda mais autoritário em sua arbitrariedade…

Isso importa? Não. Precisamos simplesmente concluir que a essência de Brasília não consiste de sua arquitetura, mas da decisão de mudar a sede do governo para o interior.

Brasília não é uma decepção, mas também não é um reencontro espetacular com um antigo ideal solista. Mais um último espasmo do que uma nova alvorada. Uma confirmação que este ideal, por agora, não é mais credível…

A organização rígida da cidade teve resultados imprevisíveis: Brasília se tornou recordista de demência, divórcios e mortes rodoviárias (autoestradas perfeitas, maus condutores, sem limites máximos de velocidade). Porque todos os diplomatas estavam alojados em um edifício residencial, esses apartamentos se viraram nos anos 80 o berço do punk no Brasil: uma alta concentração de adolescentes internacionais com os tipos de fitas de música apropriadas.

A estrutura clara tornou relativamente fácil a ocupação da cidade pelo regime militar em 1964: Brasília se tornou um panopticum ortogonal – a utopia singular, substrato para uma ditadura.



Patrimônio


Embora as asas da planta de avião da Brasília ainda não estejam terminadas, o projeto todo foi listado como Patrimônio Mundial da UNESCO em 1987. O que começou cinquenta anos atrás como um protótipo de uma nova era, virou uma relíquia. Agora o desenho é altamente relevante, até mesmo fascinante, embora por razões muito diferentes: como ‘preservar’ o que é moderno, ou em outras palavras, como parar a modernidade sobre seus próprios trilhos [how do you stop modernity in its tracks]?

O lobby para Brasília ter o status de Patrimônio Mundial, começou imediatamente após a conclusão da primeira parcela e foi iniciado pelo próprio presidente Kubitschek. Isso o faz duplamente um visionário: não só construiu a nova capital, mas também conseguiu ter seu heroísmo capturado para a posteridade pela UNESCO.

Mas como a modernidade pode ser detida? Segundo a UNESCO, a fuselagem e as asas do projeto da Brasília devem ser preservadas para sempre. Agora os apartamentos são o lar dos habitantes mais ricos da cidade – são os metros quadrados mais caros de Brasília, talvez devido ao seu estatuto de patrimônio.

Permanece bizarro que a linguagem e a tipologia do modernismo se provou insuportável nas áreas para as quais foram destinadas. Na Europa, os apartamentos de habitação social são demolidos a uma velocidade vertiginosa, mas prosperam em climas e culturas onde eles realmente não se encaixam: Zanzibar, Cingapura, Rio! As 130 superquadras de Brasília se tornaram uma colagem original do socialismo ‘hardcore’ dos anos 60, permeados por zonas neoliberais de conforto, uma amálgama única de elementos incompatíveis.

Templos gregos ainda estão de pé após três mil anos sem muita manutenção e são, portanto, fáceis de serem preservados. Uma villa em Pompéia permanece, depois de dois mil anos, ainda um tanto habitável, e uma casa do Palladio, com cinco séculos, ainda expõe uma inteligência tangível.

Mas a Casa Rietveld-Schröder, sem ainda um século de idade, já é precária e menos ‘viva’ do que os protótipos anteriores. A modernidade é fundamentalmente efêmera, nunca teve a intenção de durar. Na melhor das hipóteses, a arquitetura moderna é uma membrana mínima separando uma porção de um espaço para, temporariamente, torná-lo útil para alguma finalidade específica. A estética do moderno é uma constelação de nuances que se destina a ser transitória.



A UNESCO repetidamente ameaça tirar o estatuto de patrimônio quando um lugar ou seus arredores se tornam drasticamente ou visivelmente modernos. Dresden perdeu o status pois uma nova ponte colocou em risco a bela paisagem protegida do rio. São Petersburg está prestes a perdê-lo por causa da construção de uma torre da empresa Gazprom.

Cansada dessa frente de batalha sem fim, a UNESCO está desenvolvendo uma nova definição para “Historic Urban Landscape” [Paisagem Urbana Histórica]: o patrimônio não é mais visto como um único objeto ou um conjunto urbano, mas como ‘todas as camadas naturais e históricas de uma área; vazios, infraestrutura, processos sócias, culturais e econômicas’. Talvez Brasília seja um dos maiores testes para esta nova definição.

Na exposição CRONOCAOS [1] constatamos que o intervalo entre o ‘agora’ e o ‘preservado’ diminuiu temporalmente. Logo, o patrimônio se tornará prospectivo em vez de retrospectivo.

Brasília já chegou nesse momento. Uma proibição pública Federal de 1992 [Nota de Tradução: para denominar essa proibição foi usado o temo “oekaze” em holandês, que remete a um ato do Czar] exige que qualquer adição ao ‘avião’ seja desenhada por Niemeyer, então com 85 anos. A partir desse momento, os desenhos do Niemeyer passaram, por definição, a ser Patrimônio Mundial. O que lhe possibilitou ser ele próprio, talvez, a maior ameaça à sua reputação póstuma.

As adições mais recentes do Niemeyer são desplicentes, às vezes desagradáveis, raramente convincentes e situadas em algum lugar do vasto espectro entre o sublime e o inútil. Assim como no ‘estilo tardio Willem De Kooning’, suas obras recentes nos fazem pensar se ainda existe um cérebro funcional guiando a mão do mestre, ou se a ‘mão’ mesmo assumiu seu próprio controle.



OVNI


Por fim, encontro-me curioso com a Brasília ‘errada’. Acontece que exatamente no epicentro do moderno – um ex-ministro chamou-lhe “A Capital da Era de Aquários” – existe tanto espaço para a burocracia como para a maior concentração de seitas e místicos.

A maior dessas seitas, a Vale Do Amanhecer, foi criada pela Tia Neiva que, como motorista de caminhão, foi uma das pioneiras da cidade. Em nenhum lugar do mundo, diz a seita, a crosta da terra é mais fina; em nenhum outro lugar, a distância entre a superfície e o turbilhão de magma é menor do que em Brasília. Uma atração excelente não somente para os crentes terrestres, mas também para discos voadores que – flutuando sobre o lago – carregam a energia do globo e, eventualmente, podem pousar na água.

O prédio da seita parece um playground infantil gigante, um labirinto de curvas suaves, desenhadas no chão pelos próprios fundadores – não muito diferente do último trabalho do Niemeyer. Ao pôr do sol, os seguidores se reúnem em trajes de Star Trek e assumem seus lugares na dança.

Encontro-me secretamente pensando que eu mesmo gostaria de acreditar ou em arquitetura ou em discos voadores.


FIM


REM KOOLHAAS,

Arquiteto holandês; ganhador do Prêmio Pritzker de Arquitetura em 2000; co-fundador e sócio do OMA


NOTA:

[1] A ‘preservação’ da Brasília toca meu interesse atual em patrimônio, expressado, entre outros, na CRONOCAOS, um manifesto de herança criado para a Bienal de Veneza de Arquitetura de 2010.
CRONOCAOS é sobre o tamanho impressionante da parte do mundo que, de alguma forma, está sujeita a ‘preservação’, preservação e proteção do patrimônio cultural e natural. Conforme a nossa contagem mais escrupulosa, esta ‘preservação’ vale atualmente para doze por cento da superfície da terra. O mundo não pensou suficiente sobre essa nova – sempre crescente – circunstância: no futuro, metade do mundo vai ter que mudar radicalmente para atender a todas as novas exigências, enquanto a outra metade inevitavelmente fica presa no passado. Tempo de inatividade na qual os canais de Amsterdã – desde o reconhecimento da UNESCO em 2011, depois de muito pouca comoção – também fazem parte .

 

 

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