POR BRUNO LATOUR
TRADUÇÃO GUILHERME GIUFRIDA
FRENTE A GAIA
Introdução do novo livro do antropólogo Bruno Latour, inédito em português
Tudo começou com um movimento de dança que se impôs a mim, há vários anos, do qual não consegui me desfazer. Uma dançarina, enquanto fugia de costas para escapar de algo que devia lhe parecer terrível, não cessava de lançar para trás, de relance, olhares cada vez mais inquietos, sempre correndo, como se sua fuga acumulasse em suas costas obstáculos que atrapalhavam cada vez mais seus movimentos, até o limite em que foi forçada a virar-se completamente, e ali, suspensa, imóvel, os braços pendurados, ela percebia vir ao seu encontro algo ainda mais assustador do que aquilo de que fugira – ao ponto de forçá-la a esboçar um gesto de recuo. Ao fugir de um horror, ela encontrara um outro, em parte criado por sua fuga.
Eu estava convencido de que aquela dança exprimia o espírito do tempo; ela resumia em uma só situação, para mim muito perturbadora, aquilo de que os Modernos haviam em um primeiro momento fugido, a aversão arcaica pelo passado, e isto a que eles deveriam hoje defrontar-se, a irrupção de uma figura enigmática, fonte de um horror que não estava mais atrás dele, mas sim a sua frente. A irrupção deste monstro, meio ciclone, meio Leviatã, que, em princípio, apelidei com um nome bizarro: “Cosmocolosso [1]”.
Antes de fundi-lo muito rapidamente nesta outra figura tão controversa sobre a qual eu meditara lendo James Lovelock, a saber, Gaia. Naquele momento, eu não podia mais me esquivar: era preciso compreender aquilo que se apresentava a mim sob a forma particularmente angustiante de uma força ao mesmo tempo mítica, científica, política e provavelmente também religiosa.
Como não conheço nada de dança, precisei de alguns anos para encontrar em Stéphanie Ganachaud a intérprete ideal desse movimento [2]. Enquanto isso, sem saber o que fazer com a minha obsessão pela figura do Cosmocolosso, convenci alguns amigos próximos a criar a partir dela uma peça de teatro sobre o assunto, dando origem a Gaïa Global Circus [3]. Nessa época, por uma dessas coincidências que não deveriam surpreender àqueles perseguidos por uma obsessão, o comitê de conferências Gifford me pediu para proferir, em 2013 em Edimburgo, um ciclo de seis conferências sob o título, também muito enigmático, de “religião natural”. Como resistir a uma oferta dessas, a qual William James, Alfred North Whitehead, John Dewey, Henri Bergson, Hannah Arendt e muitos outros haviam atendido [4]? Não seria essa a ocasião ideal para desenvolver pela argumentação aquilo que a dança e o teatro me haviam anteriormente forçado a explorar? Ao menos esse meio não me seria muito estranho. Ainda mais por ter acabado de escrever uma investigação sobre os modos de existência, sob a influência cada vez mais importante de Gaia [5]. São estas conferências, modificadas, ampliadas e completamente reescritas, que se encontrará neste livro.
Se eu as publico mantendo o gênero, o estilo e o tom da conferência, é porque esta antropologia dos Modernos a qual eu persigo há quarenta anos se encontra cada vez mais em ressonância com o que podemos chamar de Novo Regime Climático [6]. Eu resumo nessa expressão a situação presente na qual o ambiente físico que os Modernos haviam considerado como assegurado, o solo sobre o qual sua história sempre se desenrolara, tornou-se instável. Como se o cenário tivesse sido montado sobre o palco para compartilhar o enredo com os atores. A partir disso, tudo muda nas formas de se contar as histórias, a ponto de politizar tudo aquilo que outrora parecia pertencer à natureza – figura que, por sua vez, se torna um enigma cada vez mais indecifrável.
Há anos que eu e meus colegas temos tentado absorver esta introdução da natureza e das ciências na política; tínhamos desenvolvido vários métodos para acompanhar e até cartografar as controvérsias ecológicas. Mas todos esses trabalhos especializados nunca conseguiram estremecer as certezas daqueles que continuavam a imaginar um mundo social sem objeto frente a um mundo natural sem humano – e sem cientistas para conhecê-lo. Enquanto nos esforçávamos para desatar alguns nós da epistemologia e da sociologia, todo o edifício, cujas funções eles haviam distribuído, caía por terra, ou, mais precisamente, desabava sobre a Terra. Estávamos ainda discutindo as ligações possíveis entre humanos e não-humanos, o papel dos cientistas na produção da objetividade, a importância eventual das gerações futuras, o fato de que os próprios pesquisadores multiplicavam as invenções para falar da mesma coisa; todavia, numa escala totalmente outra, surgiam: o “Antropoceno”, a “grande aceleração”, os “limites planetários”, a “geohistória”, os “pontos de inflexão” [“tipping points”] as “zonas críticas”, todos esses termos surpreendentes e que parecem necessários, os quais, pouco a pouco, iríamos encontrar para compreender esta Terra que parece reagir as nossas ações.
Minha disciplina de origem – a sociologia ou, melhor, a antropologia das ciências – encontra-se hoje convencida pela evidência amplamente compartilhada segundo a qual a antiga Constituição que repartia os poderes entre ciência e política tornou-se obsoleta. Como se tivéssemos passado de um Antigo Regime a um Novo marcado pela irrupção multiforme da questão dos climas e, algo ainda mais desconhecido, de sua ligação com o governo. É no sentido mais amplo dessas expressões que os historiadores da geografia só utilizavam no contexto da “teoria dos climas” de Montesquieu, que, há muito tempo se tornou obsoleta. Bruscamente, todo mundo pressente que um outro Espírito das leis da Natureza está por emergir e é preciso começar a redigi-lo se desejamos sobreviver às forças desencadeadas por este Novo Regime. A esse trabalho coletivo de exploração esta obra gostaria de contribuir.
Gaia é apresentada aqui como a oportunidade de um retorno para a Terra, permitindo uma versão diferenciada das respectivas qualidades que podemos exigir das ciências, das politicas e das religiões, enfim trazidas para definições mais modestas e mais terrestres de suas antigas vocações. (…)
[Esse artigo é a introdução do novo livro Face à Gaia, do antropólogo Bruno Latour. Recém publicado na França, o texto ainda é inédito em português. Sobre o conceito de Gaia, além dos livros do autor, ver, por exemplo, Isabelle Stangers (No tempo das catástrofes) para quem: “Gaia foi assim batizado por James Lovelock e Lynn Margulis no início dos anos 70. Eles incorporavam pesquisas que contribuem para esclarecer o denso conjunto de relação, articulando o que as disciplinas científicas tinham o hábito de tratar separadamente: os seres vivos, os oceanos, a atmosfera, o clima, os solos mais ou menos férteis. Dar um nome, Gaia, a esse agenciamento de relações, era insistir sobre duas consequências dessas pesquisas. Aquilo de que dependemos e que foi com frequência definido como “dado”, o enquadramento globalmente estável de nossas histórias e de nossos cálculos, é produto de uma história de coevolução, cujos primeiros artesãos e verdadeiros autores permanentes foram as inúmeras populações de microorganismos. E Gaia, ‘planeta vivo’, deve ser reconhecida como um ‘ser’, e não assimilada a uma soma de processos (…): ela é dotada não apenas de uma história, mas também de um regime de atividades próprio, oriundo das múltiplas e emaranhadas maneiras pelas quais os processos que constituem são articulados uns aos outros”. Ou ver também Deborah Danowski e Eduardo Viveiro de Castro (Há mundo por vir?: ensaio sobre os medos e os fins): “A transformação dos humanos em força geológica, ou seja, em um fenômeno ‘objetivo’, em um objeto ‘natural’, em um ‘contexto’ ou ‘ambiente’ condicionante, paga assim com a intrusão de Gaia no mundo humano, dando ao Sistema Terra a forma ameaçadora de um sujeito histórico, um agente político, uma pessoa moral”]
(Trecho de: Face à Gaïa. Huit conférences sur le nouveau régime climatique. Paris: Éditions La Découverte, outubro de 2015; pp. 9-12)
© Éditions La Découverte, 2015
Bruno Latour,
antropólogo francês, professor do Institut d’études politiques de Paris (Sciences Po), autor de, entre diversos livros, Jamais fomos modernos (Ed. 34, 1991).
[1] Bruno Latour, Kosmokoloss (2013), reproduzido na rádio alemã. O texto da peça assim como a maior parte dos meus artigos citados neste livro estão disponíveis em versão final ou provisória através do site: <www.bruno-latour.fr>.
[2] Encenado em 12 de fevereiro de 2013, filmado por Jonathan Michel, disponível através do link <www.vimeo.com/60064456>.
[3] Trabalho coletivo conduzido desde a páscoa de 2010 pelos diretores Chloé Latour e Frédérique Aït-Touati; com os atores Claire Astruc, Jade Collinet, Matthieu Protin e Luigi Cerri; e Pierre Daubigny, autor do texto Gaïa Global Circus.
[4] As seis conferências estão disponíveis através do site das conferências Gifford da Universidade de Edimburgo, <www.ed.ac.uk>. Sobre a história dessas conferências e do tema da “religião natural”, bastante enigmática aos olhos dos franceses, ver Larry Witham, The Measure of God, 2005.
[5] Bruno Latour, Enquête sur les modes d’existence, 2012.
[6] A expressão derivou de um termo introduzido por Stefan Aykut e Amy Dahan, Gouverner le climat?, 2015, para designar a maneira muito particular e, segundo eles, pouco eficaz, de tentar “governar o clima”.