TEXTO DA VEJA SP SOBRE A TRANSFORMAÇÃO DO GINÁSIO DO IBIRAPUERA EM SHOPPING CONTÉM INFORMAÇÕES IMPRECISAS SOBRE PATRIMÔNIO HISTÓRICO

GABRIEL KOGAN DEZ/2020


Veiculado na semana passada (18/12/2020) no site da Veja São Paulo, o artigo “A gritaria da ‘elite progressista’ para manter um Ginásio do Ibirapuera obsoleto”, assinado pelo editor-chefe da revista, Raul Juste Lores, distorce fatos e conceitos sobre a disciplina arquitetônica a fim de justificar a transformação do complexo esportivo em um shopping center. Os sete erros.

1- Há um problema gritante de formato jornalístico no artigo. Em tempos de fakenews, quando os órgãos de comunicação deviam zelar por rigor de informação, a inadequação a formatos produz confusão proposital no leitor. Aqui não fica claro de partida se é um artigo opinativo, se é uma apuração jornalística com checagem de fatos ou se é um editorial (aliás, a única coisa que ele deveria de fato ser pelas implicações do autor).

2- O texto desenvolve uma oposição inexistente entre preservação do complexo esportivo e a adequação deste a novos usos. Essa premissa falaciosa no texto não está amparada por qualquer teoria contemporânea do patrimônio histórico. Em 2012, o holandês Rem Koolhaas organizou a exposição Cronocaos, apresentada pela primeira vez na Bienal de Veneza. Koolhaas colheu dados objetivos sobre atuais contradições da preservação histórica e mostrou uma coincidência entre marcos de preservação pelo mundo (como o surgimento de instituições nacionais públicas de defesa do patrimônio) e surtos progressistas (inclusive revolucionários; revolução burguesa, revolução industrial). Concluiu que “quando se muda tudo, precisa-se pensar o quê não mudar”. Assim, ao contrário do que o senso comum supõe, a preservação histórica significa desenvolvimento (de todas as naturezas, econômicas e políticas). A ideia de preservação como um processo de embalsamento de um objeto sob uma redoma de vidro não é defendido por qualquer teórico desde John Ruskin. O “tombamento” – como se diz – significa invariavelmente alinhar a preservação da memória arquitetônica e urbanística do espaço a necessidade de incorporação de novos usos e programas. No caso específico do Ginásio do Ibirapuera, com algumas obras de subsolo e adições de edifícios que não prejudicassem a envoltória, seria facílimo conciliar a forma arquitetônica do edifício de Ícaro de Castro Mello a uma “arena multiúso central na faixa dos 20 000 espectadores.”

3- O autor do texto demonstra desconhecimento sobre exemplos internacionais citados, como na frase destinada a arquitetos paulistas: “Poderiam se inspirar na prefeita socialista de Paris, que vendeu dezenas de imóveis pouco utilizados e, além de fazer caixa, determinou os usos e a renovação de áreas degradadas parisienses”. Antes de tudo, o termo “degradado” não é mais utilizado cientificamente e passou a denotar preconceito racial e de classe. Tecidos urbanos ditos “degradados” geralmente denotam lugares de ocupações de baixa renda e/ou por imigrantes, ou seja, carregam interesses por “renovações” urbanas por parte de especuladores que veem nesse bairros potenciais operações baratas para lucros fáceis. Além disso, a citação aos concursos urbanos de Paris aparece descontextualizada e destituída do significado político/histórico. O objetivo fundamental da mencionada “venda de imóveis” na França é garantir a aplicação da lei nacional que demanda que ao menos 20% de cada bairro tenha habitação social para pessoas pobres. Na toada dos projetos, e para garantir diversidade de atividades, a prefeitura inclui centros culturais e programas institucionais, mas isso representa apenas uma porcentagem ínfima das chamadas. Os tais imóveis vendidos por sua vez foram, em grande maioria, adquiridos em tempos de crise, quando há maior oferta para o poder público, que consegue reduzir assim oscilações econômicas cíclicas com novos investimentos. Os terrenos “privatizados” passam a ser administrados por imobiliárias públicas que se encarregam da disponibilização de geralmente metade dos edifícios construídos por meio de locação social. O direito nesse modelo francês não é pela propriedade, mas pela habitação e pelo uso democrático da cidade. Se olharmos no caso específico do Ginásio do Ibirapuera, seguindo o conselho do editor da revista, se estivesse na França seria disponibilizado junto de um grande pacote de concursos para incorporadores e investidores, com o objetivo de atrair a atenção de todo o conjunto de áreas. Poderia até não ter habitação dentro da própria área, mas pediria contrapartidas caras (aliás, esse tipo de área passou a ser considerado o pior pelos investidores privados). Mesmo que não especificado no edital, um ginásio desses jamais seria demolido ou descaracterizado para virar shopping em Paris por duas razões óbvias: (a) o mandatário do concurso não é a construtora nem os investidores, mas – por lei – o próprio arquiteto que tem responsabilidades públicas e frente a preservação histórica, (b) toda intervenção precisa ser aprovada em comissões comunitárias rigorosas que zelam por todos os bens mesmo aqueles não preservados. Ou seja, o autor do artigo da Vejinha não faz a menor ideia do que esteja falando, ou finge não saber para sofismar. Agora… Aceito o desafio: vamos implantar o modelo francês? Mas vamos implantar na íntegra, ok?

4- O artigo em questão tangencia uma verdadeira questão sobre o papel dos conselhos de patrimônio, mas a inverte para causas próprias. Menciona, por exemplo, que existem “4 000 imóveis tombados nos últimos quarenta anos” e que “nunca o tal ginásio entrou na lista”. Esse número não significa absolutamente nada. Quatro mil é muito ou pouco para um município com mais de 12 milhões de pessoas? E quais são esses imóveis e por que foram preservados? Sabemos, por exemplo, que há uma lei que faz com que o valor venal de imóveis tombados possa ser vendido virtualmente como potencial construtivo. Ou seja, os próprios proprietários desses imóveis pedem a preservação, para conseguir vendê-los sem nunca se desfazer da propriedade. Mas de fato, aconteceu um desvirtuamento dos órgãos de patrimônio histórico que se tornaram o último e único bastião de resistência, com poder concreto de atuação, contra a transformação desordenada e exploratória da cidade. Então, em vez de criminalizar a defesa do patrimônio arquitetônico e urbanístico, não seria o caso de criar novas instituições/conselhos com alto poder para decidir sobre grandes empreendimentos? Talvez assim possamos recolocar os critérios de avaliação. E que essas instituições não sejam chapa branca e sim compostas por pensadores e teóricos do urbanismo. Afinal não é da ciência que estamos saindo em defesa no último ano? Aliás, os EUA – que sempre se mostraram refratários às normas de preservação histórica – desenvolveram seus conselhos ultrapoderosos nos condados.

5- Debates e fatos alienígenas à discussão são inseridos de forma descontextualizada no texto. Mora aqui uma cilada armada pelo editor-chefe que, por causa disso foi acusado de desonestidade intelectual nas redes sociais. A fim de mobilizar pelas vísceras seus leitores, o autor insere palavras chaves chamativas que agem emocionalmente sobre as massas em fúria. A USP, por exemplo, mencionada duas vezes no texto, não tem nada a ver com o assunto. Nada. E assim, como um fluxo dadaísta desconexo de frases, vem nomes e fatos completamente desassociados ao assunto para criar desorientação sobre o tema central, inserir personagens desacreditados pelo público-leitor, incentivando o compartilhamento em redes de comunicação, como caça cliques, para enfim gerar desinformação: PT (5 menções), desastres ocorridos durante o governo Temer (2 menções), Reforma do Anhangabaú (2 menções), Estádios da Copa do Mundo (8 menções), estruturas ligadas ao Carnaval (2 menções), Monotrilho e Petrobrás. Coloque todas as coisas que se tem percepções públicas ruins (reais ou falsas) em um mesmo texto e aproxime-as do assunto travestido de uma pseudo razão para movimentar emocionalmente o leitor sobre um tema. Ainda, o autor se vale do subterfúgio de ocultar diretamente os nomes de pessoas envolvidas para evitar direitos de respostas, falando de formas genéricas e imprecisas sobre fatos. Por tudo isso vieram acusações nas redes sociais por parte, claro, da ‘elite progressista’ histérica.

6- O autor pinta uma imagem de que o lugar esteja vazio, “obsoleto”, e que não tem utilidade pública. Ninguém quer treinar, ninguém quer nadar, ninguém quer fazer esporte. No entanto, ao longo das últimas semanas, esclareceu-se que o processo de sucateamento do complexo esportivo foi incentivado pelo próprio poder público, provavelmente já antevendo a possibilidade de concessão. Seleções e times tentavam usar o complexo esportivo, mas dificuldades surgiam artificialmente, inclusive com a cobrança de valores mais altos do que aqueles praticados pelo mercado. Há demanda, o que não houve foi um projeto de gestão do lugar que até mesmo previsse, surfando no intenso uso possível, uma renovação paulatina das instalações.

7- Em nenhum momento o programa, o projeto arquitetônico e os beneficiários são debatidos pelo artigo. Agora, vamos parar para pensar sobre a questão friamente: a gente vai pegar um pedaço de um parque público, o maior da cidade, que tem nesse pedaço uma cara infraestrutura instalada de esporte capaz de abrigar um centro de treinamento de excelência, e que pode servir também como local de lazer democrático para a população, bem inserido na rede de transporte público da cidade, demolir ou mudar tudo e transformar em um shopping center. Para além de quem vai administrar isso: faz algum sentido? A questão não é o conjunto arquitetônico; a questão não é o poder privado participar disso; a questão é a nova função e para quem ela será destinada! E se queremos mesmo falar sobre o projeto arquitetônico: por que não aproveitar as potencialidades do lugar, corrigir os defeitos (que existem!) do projeto original, manter a memória, readequar o programa, colocar novos usos e deixar a Magic Paula orgulhosa? Não seria lucrativo ou não seria tão lucrativo quanto a proposta em pauta?

 

Fotos: Sérgio Valle Duarte/Wikipedia