POR MANOEL FRIQUES
OUR CITIES WERE BUILT TO BE…
Uma entropologia brasileira:
Caetano Veloso, Lévi-Strauss,
Georges Bataille
O antropólogo Claude Lévi-Strauss detestou a Baía de Guanabara, mas em Tristes trópicos mostrou as faces de um Brasil até hoje desconhecido. Paralelamente à descrição das formas sociais indígenas, sua leitura sobre o país revela o radical paradoxo brasileiro sintetizado em “Aqui tudo parece que era ainda construção e já é ruína”, transformada em verso por Caetano Veloso.
Em certo trecho de Tristes trópicos, Lévi-Strauss condensa – com a precisão que lhe é caraterística – o mistério brasileiro: “O Brasil se transformara mais do que se desenvolvera”. Em uma única frase, o antropólogo francês expõe as contradições tropicais, às quais tanto fascinam quanto preocupam o compositor brasileiro.
É difícil ignorar, de imediato, os fortes resquícios positivistas dessa frase, ressoando aí uma caduca aproximação novecentista entre cultura e civilização, ambas voltadas inequivocamente ao progresso. Mas não se trata de acusar Lévi-Strauss, dedo em riste a sua face: positivista! Nem mesmo de desconsiderar o seu fascínio pela ciência (o pensamento científico), a ponto de vê-la em qualquer canto (o pensamento selvagem).
O que é “transformar” se não “desenvolver”? Os dois termos não ocupam o mesmo paradigma? Não seriam sinônimos? O interessante aqui é menos o ajuizamento crítico da descrição etnográfica do que a capacidade de Lévi-Strauss em abrir um abismo diferencial entre o desenvolvimento e a transformação. Ao deslocarmos o foco das especulações conceituais para os problemas sociopolíticos em que estamos mergulhados, constatamos que – com toda a melancolia produzida pela crise da ciência europeia – Lévi-Strauss tem razão.
Desenvolver parece carregar a possibilidade de um processo sistemático de transformação; um processo planificado. Se o Brasil se transformou e não se desenvolveu, as transformações por aqui não ocorrem de modo processual, havendo em nossa paisagem a justaposição de diferentes temporalidades. Esta ausência de mediação efetuada pelo processo planificado — o anti-hegelianismo tropical — parece aproximar-se tanto da imagem dialética definida por Walter Benjamin [1] quanto do princípio surrealista de justaposição[2].
Essa justaposição dialética aparece em duas letras de Caetano Veloso, resultados de um diálogo com o pensamento de Lévi-Strauss. Fora da Ordem é um retrato cirúrgico de uma paisagem cuja intensidade extrapola a composição domesticada de um cartão-postal. Nesta fenomenal canção do álbum Circuladô, pipocam aqui e ali imagens dialéticas de uma transformação sem desenvolvimento nem precisa orientação: a ruína de uma escola em construção; o asfalto, a ponte, o viaduto ganindo pra lua: nada continua. Em Sampa, mal se vê quem sobe ou desce a rampa.
Neste versos, Caetano descreve um embaralhamento endêmico à cena brasileira onde o fóssil é gêmeo do feto. Não se trata aqui de uma substituição do velho pelo novo, como ocorre com nossos dispositivos tecnológicos guiados pela obsolescência programada. A descrição de Caetano revela um presente abismático, onde a promessa do que virá (a construção) é ela mesma revestida de destruição. O presente é um hiato surrealista que justapõe realidades distintas e que se esquiva a ser canalizado em única direção.
O sentido de construir para destruir surge também em outra canção do baiano, “Maria Bethânia”: Everybody knows that our cities were built to be destroyed [Todos sabem que nossas cidades foram construídas para serem destruídas]. Seria essa a tal destruição criativa de Schumpeter, transformada em lei neoliberal do funcionamento capitalista [3]? Não parece ser o caso, até mesmo porque o desejo do narrador de Maria Bethânia é um só: receber a carta da irmã, Bethânia, onde seria possível constatar que as coisas estão melhorando [I wish to know things are getting better]. Trata-se de um desejo [I wish]: um desejo de processo, de desenvolvimento; como o gerúndio [getting] parece indicar. Nesta carta-canção, o narrador encontra-se exilado em uma cidade do “Velho Mundo”, terra de processos históricos pautados pela mediação. Sua carta se dirige, todavia, a uma cidade do “Novo Mundo” marcada pela doença crônica descrita por Lévi-Strauss: “eternamente jovem, nunca saudável” [4]. Desejar não é constatar.
Sem dúvida, as duas canções oferecem retratos da aproximação entre construção e destruição. Impressiona ainda mais exatamente a justaposição entre uma descrença e uma valorização da força transgressiva, disruptiva. Em “Maria Bethânia”, algo curioso ocorre. Ao final de uma canção dedicada à irmã, Caetano diz: But I love her face cause there’s nothing to do with all that I said. O próprio compositor desconstrói aquilo que construiu: a face de Maria Bethânia nada teria a ver com tudo dito na canção com o seu nome.
A segunda metade de “Fora da ordem” descreve alguma coisa de nossa transa que é quase luz forte demais, parece pôr tudo à prova, parece fogo, parece paz. E o show de Jorge Benjor é muito, é grande, é total. Aqui não há uma reprovação da indeterminação, mas, surpreendentemente, a apropriação poética de seu princípio. Neste último caso, o desejo irrompe a ordem: é o poder destruidor da transa (de uma luz forte que pode cegar, do fogo a transubstanciar as coisas) descrita por Caetano.
Esse movimento intenso de extrapolação da ordem efetuado pelo desejo permitiria tecer ainda uma conexão de Caetano ao surrealismo, não tanto por meio da perspectiva do seu legislador principal — André Breton — mas justamente pela visão desenvolvida por seu inimigo interno — Georges Bataille [5]. E, de novo, podemos reencontrar a etnografia, dado o interesse de Bataille por povos distantes, espacial e temporalmente, de Paris.
Em um de seus textos mais conhecidos, Bataille foca, como um arqueólogo ou etnógrafo, uma “América desaparecida”, descrevendo a relação intrínseca entre crueldade e religião em rituais sacrificiais encontrados na civilização Asteca, os quais reúnem humor negro, fervor religioso e padres canibais [o verso de Caetano “é muito, é grande, é total” ecoa aqui]. O autor se interessaria, assim, por rituais antropofágicos encontrados em civilizações pré-colombianas, neles inspirando-se para formular uma proposta surrealista fundada não tanto na idealização do inconsciente (como Breton), mas no poder destruidor do desejo.
Bataille se volta para um erotismo — retórico e temático — transgressor de fronteiras estabelecidas pela ordem (como em A história do olho, onde a devassidão dos personagens ecoa na concatenação semântica entre ovo, olho, testículos e sol); e para rituais que entrelaçam autoridade e destruição (como o ritual potlatch – um fato-social-total, no qual a soberania do chefe tribal seria proporcional a sua capacidade em dar ao inimigo tudo que possui). Esse pensamento se desvirtua do racionalismo, valorizando o poder libertador da destruição [6].
“Fora da Ordem” e “Maria Bethânia” partem da falta de continuidade característica da história brasileira. Devido a isto, as duas canções compartilhariam com Tristes trópicos um olhar sobre nossos paradoxos. No livro de Lévi-Strauss, a antropologia é redefinida como entropologia — a ciência da entropia humana — sugerindo que o eminente desaparecimento do objeto antropológico estaria absolutamente atrelado ao esforço de entendimento de seus indícios e rastros. O etnógrafo precisa então, a todo momento, lidar com um irredutível mal-estar ao realizar uma arqueologia de um tempo presente em vias de extinção.
As canções de Caetano vão além desta constatação melancólica, apropriando-se poeticamente do princípio da contradição: é aqui que elas aproximam-se da etnografia surrealista em torno de Bataille. Mas, se, conceitual e poeticamente, a destruição e a transgressão são deveras tentadoras, de qual modo poder-se-ia justapor o poder disruptivo encontrado em Caetano (e também em Bataille) à realidade crua e nua brasileira? Dito de outro modo: há um salto poético em Caetano sob o signo da antropofagia enquanto metáfora cultural. Seria possível realizar um contra-salto, equacionando chacinas, desastres ambientais, descontinuidades e corrupção a uma prática surrealista-antropofágica?
O sol se pôs
Depois nasceu
E nada aconteceu
Manoel Silvestre Friques,
professor assistente na Universidade de Engenharia da UNIRIO. Trabalha em projetos culturais como curador e dramaturgo.
[1] Grosso modo, a dialética hegeliana pauta-se por um processo, um desenvolvimento mediado. O conceito de Benjamin descartaria precisamente a mediação, propondo uma imobilidade dialética. A mediação associada ao pensamento dialético seria um dos fatores que distinguiriam, para Agamben, os pensamentos de Benjamin e de Adorno. Para uma discussão bastante elucidativa, ver O Príncipe e o Sapo: o problema do método em Adorno e Benjamin, capítulo de Infância e História, de Giorgio Agamben.
[2] O encontro, ao acaso e em uma mesa de dissecação, entre a máquina de costura e o guarda-chuva, seria uma chave metafórica fundamental aos surrealistas retirada de Lautréamont. Susan Sontag, em “Happenings: an art of radical juxtaposition”, iria ampliar o escopo desta imagem para além do surrealismo, investigando os Happenings a partir do princípio de justaposição.
[3] A destruição criativa é um conceito utilizado para justificar “naturalmente” a competição neoliberal, sendo o impulso fundamental ao capitalismo. Sob esta perspectiva, a inovação que impele ao desenvolvimento econômico substitui, destruindo, a ordem precedente. Tal abordagem, muito comum nos debates de empreendedorismo, opera uma redução no pensamento de Joseph Schumpeter.
[4] Do trecho de Tristes trópicos (Claude Lévi-Strauss. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, 4ª reimpressão, pp.91-92; tradução Rosa Freire D’Aguiar): “Mas essas férias fora do tempo a que convida o gênero monumental, essa vida sem idade que caracteriza as mais belas cidades, transformadas em objeto de contemplação e de reflexão, e não mais em simples instrumentos a função urbana – as cidades americanas nunca chegam a tal. Nas cidades do Novo Mundo, seja Nova York, Chicago ou São Paulo, que muitas vezes lhe foi comparada, o que me impressiona não é a falta de vestígios: essa ausência é um elemento de seu significado. Ao contrário desses turistas europeus que torcem o nariz porque não podem acrescentar a seus troféus de caça mais uma catedral do século XIII, alegro-me em me adaptar a um sistema sem dimensão temporal, para interpretar uma forma diferente de civilização. Mas é no erro contrário que caio: já que as cidades são novas e tiram dessa novidade sua essência e justificação, custo a perdoá-las por não continuarem a sê-lo. Para as cidades européias, a passagem dos séculos constitui uma promoção; para as americanas, a dos anos é uma decadência. Pois não são apenas construídas recentemente; são construídas para se renovarem com a mesma rapidez com que foram erguidas, quer dizer, mal. No momento em que surgem, os novos bairros nem sequer são elementos urbanos: são brilhantes demais, novos demais, alegres demais para tanto. Mais se pensaria numa feira, numa exposição internacional construída para poucos meses. Após esse prazo a festa termina e esses grandes bibelôs fenecem:as fachadas descascam; a chuva e a fuligem traçam seus sulcos, o estilo sai de moda, o ordenamento primitivo desaparece sob as demolições exigidas, ao lado, por outra impaciência. Não são cidades novas contrastando com cidades velhas; mas cidades com ciclo de evolução curtíssimo, comparadas com cidades de ciclo lento. Certas cidades da Europa adormecem suavemente na morte; as do Novo Mundo vivem febrilmente uma doença crônica; eternamente jovens, nunca saudáveis, porém.”
[5] Bataille se auto-definiria como inimigo interno do surrealismo. Atualmente, são bem conhecidas as disputas e os conflitos inerentes do surrealismo, resultantes, em parte, do poder de André Breton em incluir e expulsar quem quisesse do núcleo principal do movimento. Com o lançamento da revista DOCUMENTS, forma-se, em torno de Georges Bataille, um grupo dos surrealistas dissidentes. De modo esquemático, pode-se dizer que a etnografia e a arqueologia seriam essenciais ao surrealismo de Bataille assim como a psicanálise fundamentaria o surrealismo de Breton.
[6] E, se é possível justapor o interesse etnográfico pelos surrealistas dissidentes às imagens dialéticas que povoam a nossa paisagem urbana, pode-se ainda lançar-se a seguinte indagação: o informe de Bataille, enquanto categoria que escapa à classificação, não poderia ser justaposto à Forma difícil de Rodrigo Naves, fundada em uma conexão entre a fragilidade institucional das artes visuais brasileiras e a timidez formal de sua produção?