POR GUILHERME GIUFRIDA

A ORIGEM DOS OBJETOS

Notas sobre as Dádivas de Nuno Ramos



Durante a exposição Houyhnhnms, de Nuno Ramos, na Estação Pinacoteca (ago-nov 2015), muito se escreveu sobre as telas inéditas de grande dimensão e espessura. Todavia, pouco se comentou sobre as vídeo instalações “Cavaloporpierrô” e “Casaporarroz”, apresentadas pela primeira vez em São Paulo. Espécies de gangorras fixas, suspensas sobre o salão expositivo, balizavam, respectivamente, uma caixa de CD-System que emitia ruídos de um samba-canção e um cavalo de madeira, desses de parque de diversão antigo; a outra, equilibrava uma parte cerrada de boleia de um caminhão, sustentando um monte de arroz, contraposta por um gaveteiro de madeira de lei. Pareciam resquícios de um evento que passara por ali, refeitos sob o equilíbrio meticuloso dos pesos entre cada par de objetos.

Os vídeos, na mesma sala, contam, em “Cavaloporpierrô”, a história de um pierrô distraído na cidade grande. Depois de percorrer parques de diversão vazios e montar em um carrossel, prevê perigo e tenta esconder-se, mas é capturado por sequestradores de moto. Dentro do cativeiro, um cavalo, até então preso, passa por dentro do sala onde está o pierrô. A câmera percorre em pan o desespero de um e a liberação do outro, que parte em galope pelas ruas onde há pouco vagava o pierrô. O vídeo de “Casaporarroz” começa em um cartório no qual se firma a venda de uma casa. O burocrata explicita os termos da lei de transferência das propriedades. A compradora e o vendedor parecem satisfeitos, e trocam uma chave por um punhado de arroz. Já na casa recém adquirida, a personagem assiste ao antigo proprietário carregar sua mobília na boleia de um caminhão. Seguimos o caminho da mudança, levada para outra localidade; no meio de uma mata, os móveis são dispostos sobre a várzea de um rio. Enquanto isso, na casa recém adquirida, a proprietária preenche os cômodos com arroz, que surgem do seu bolso e aos poucos encobrem-na. Ela despe-se e, nua, deita.

Na sala seguinte da exposição há o outro elemento da instalação: som, cavalo, boleia, mobília e as hastes que os mantinham em suspensão e equilíbrio aparecem replicados com outros materiais, uma cópia oca de cada uma das esculturas feitas de latão, tombadas sobre o chão. Em torno dos objetos circula um líquido viscoso, bombeado por dois tubos transparente nos quais se lê: “glicose” e “morfina”.



Intenção


Esses trabalhos decorrem da exposição Ensaio sobre a Dádiva, montada na Fundação Iberê Camargo de Porto Alegre em 2013. O nome é uma referência direta ao texto do antropólogo Marcel Mauss, publicado no início dos anos 1920[1]. Em uma entrevista que fizemos em seu atelier enquanto realizava as pinturas, Nuno disse que o texto de Mauss lhe traz muita inspiração, assim como outros da antropologia (além de Mauss, mostra interesse e leitura de Claude Lévi-Strauss, Michel Foucault e Marshall Sahlins). “É um assunto extremamente excitante pra mim, mais do que filosofia, sobretudo pelo pensamento cosmogônico, sobre a origens das coisas”.

No caso especial do texto “Ensaio sobre a Dádiva”, Nuno diz guardar a ideia de uma “troca maluca”. Mauss discute sociedades em que a troca não se daria sob a forma-mercadoria, mas sim sob a forma-dádiva, em que partes das pessoas seguiriam ligadas às coisas, e, por isso, não seria possível distinguir os objetos das relações. Inclui certas sobrevivências desse modo de entender as trocas nas sociedades ocidentais, como a obrigação de dar, receber e retribuir; o gasto das economias acumuladas em comemorações festivas; e a afetividade que regula algumas decisões econômicas.

Eu estava querendo pensar trocas onde não fosse possível a equivalência, que é a maldição da mercadoria, trocas sem essa forma de valor. Se eu me lembro da leitura do Mauss, ele diz que a distinção entre pessoas e coisas ainda não estava bem montada, precisaria que os romanos a fizessem. Então, é como se o objeto dadivoso estivesse impregnado da pessoa. Você receber aquilo é o mesmo que você ser possuído por ela. Esse objeto impregnado por uma pessoa é um objeto estético, pelo menos da Renascença em diante, porque tem um autor ali que está presente. Você não dissocia muito aquele objeto de um autor, nisso ele é diferente de qualquer mercadoria que é anônima. No caso do objeto de arte, esse alguém, que é autor dela, está lá o tempo todo, mas, ao invés de possuir, é visto benignamente. Por isso, eu acho que o objeto de arte pode ser visto como dadivoso.

Em “Casaporarroz” estamos diante de uma troca regida por motivações outras, para além da lógica da mercadoria, organizada pela valorização dos capitais e a separação entre vontades e razão, apesar de, ironicamente, o tabelião recitar termos jurídicos. O imponderável do ponto de vista do valor de troca é intercambiado no terreno da ficção, que não compartilha a noção de mercadoria, mas sim a da dádiva – que é distinta da caridade, pelas obrigações que acarreta. “Cavaloporpierrô” é mais opaco, mostra a simples substituição de um personagem pelo outro, explicitada no movimento de câmera no momento da troca. Os dois nem ao menos se olham, apenas mudam de lugar: o pierrô é aprisionado no cativeiro e o cavalo solto na cidade. Da troca, só restam os fragmentos de objetos presentes na galeria expositiva.

É poético, não vai muito além de eu achar interessante trocar um saco de arroz por uma casa, por exemplo. No meu caderno tem outras ideias. Aí eu vou desenvolvendo narrativamente. Como seria? Aí vem a hora que a história dá uma escultura, aí vou escolhendo por critérios como se o material pode ser fundido, e, por último, se vou ter dinheiro pra fazer essas peças.

Depois de escutar algumas vezes a gravação da entrevista com Nuno, percebi minha insistência, desde a elaboração das perguntas, no significado dos itens escolhidos para troca (conflitos entre natureza e cultura, cidade e campo e outras metáforas). No entanto, uma análise interpretativa a partir dessa dramaturgia – buscando ligações causais entre as escolhas de Nuno e o mundo externo a elas – seria inócua para pensar esse trabalho.

Os objetos em Ensaio sobre a Dádiva não se explicam por sua relação metonímica com o mundo. São dois pares de entes concretos, mudos, intercambiados em uma coreografia rígida, sem explicação prática que lhes deem conta para além de colocar equivalência, a partir do balizamento de peso, itens que até antes desse exercício estavam dispersos no mundo. Esses exercícios de criar intencionalmente uma relação entre coisas – cujo resultado se testemunha na exposição – é o próprio trabalho do artista.  O objeto estético é a retribuição da troca entre coisas diferentes, e que nunca, sob a lógica da mercadoria, se imaginou colocar em contato, quão menos trocá-las.



Nome


Discípulo declarado do artista alemão Joseph Beuys (1921-86), Nuno pensa seus trabalhos a partir dos aspectos materiais que lhe dão forma.

Eu gosto de matéria, a coisa que mais me irrita é artista que fala: – Ah eu quero fazer uma cadeira de vidro. Qual cadeira? Que vidro? Como que junta? Me dá nervoso quando não consigo pensar as coisas. E muitas vezes eu não consigo. A minha relação com Beuys vem exatamente disso. Há nele uma antropologia da escultura, assim como o [Richard] Serra tem uma arqueologia. No Beuys o que está em jogo é o conceito antropológico da arte: pra que que serve, qual a origem de você colocar uma coisa para estar no mundo, para se separar do mundo e de você. Nesse sentido, o Beuys é importante pra mim. Mas eu sou muito mais leve que ele.

Marcel Mauss, no subtítulo do artigo lido por Nuno, afirma escrever sobre a “forma e razão da troca nas sociedades arcaicas” – a obrigação que a coisa dada carrega de ser retribuída não é imposta no campo das ideias e da moral simplesmente, mas, e sobretudo, através da forma dessa transação. É necessário observar na troca-dádiva não apenas os signos, mas como eles se entrelaçam de forma particular nos objetos.

As leituras sobre dádiva parecem deslocar a preocupação de Nuno sobre a materialidade plástica escolhida para envolver os trabalhos. Segundo ele, o texto de Mauss lhe criou a possibilidade de produzir uma obra a partir de “coisas nomeáveis”. Além do exercício estético de colocar coisas disparatadas em relação, interessa ao artista os objetos específicos escolhidos para realizar essas trocas: o cavalo imobilizado no fragmento de um brinquedo, o movimento da mudança observado por uma parte cerrada do caminhão, o arroz branco a cobrir progressivamente os tacos de madeira da casa, o pierrô de quem só sobreviveu uma caixa de som com sussurros da sua música, a mobília familiar que permanece imóvel sobre a água.

Botar em relação coisas disparatadas, fazer uma faísca entre coisas, usar objetos concretos ou coisas nomeáveis. Isso pra mim foi muito importante: ter acesso a um caminhão e não à matéria de um caminhão. Nunca tinha conseguido fazer isso, a não ser pra destruir. Foi a única vez que consegui colocar uma coisa do mundo pra dentro das minhas coisas. É uma novidade pra mim, e foi a ideia de dádiva me ofereceu isso. (…) O que é uma cômoda? O que que é isso? Quanto é que vale? Quanto pesa? Como que se relaciona com o resto? O quanto disso é matéria? O quanto não é?

Nos vídeos de “Casaporarroz” e “Cavaloporpierrô”, os personagens mudam de lugar, migram para espaços que não lhes são familiares – o cavalo no cativeiro, a montanha de arroz na sala, a mobília no rio – mas não mudam de estado, tampouco fundem-se ou alteram-se. O vento passa, move as marolas, e a mobília segue completamente imóvel e firme. Trata-se do limite dado pela materialidade na obra de Nuno, aqui levado às últimas consequências: coisas do mundo aparecem por inteiro e permanecem como tal em toda obra, como os móveis que jamais afundam (ao contrários de outros trabalhos do artista, como “Maré Mobília”), reforçando o sentido estético promovido pela troca.

Por sua vez, as esculturas da segunda sala parecem vestígios materiais do próprio exercício estético que o autor realiza nas balanças elevadas da primeira.

A réplica é o cadáver das esculturas, como se a forma tivesse viva e pendurada, e lá estivesse adormecida por esses líquidos rodando dentro dela. Conclui como se fosse uma pós-troca, a coisa já estabilizada e refeita.

Depois de restituir a importância dos objetos, a partir do exercício de relacioná-los intencionalmente por meio de ficções e elevá-los por pedestais, participam de algo como um incêndio ou um ritual de destruição (como o Potlach também discutido por Mauss no texto [2]), todavia, sobrevivem em simbiose. As réplicas das esculturas ocas feitas de metal barato são mantidas vivas também por anestésicos: “um amalgama que protege os objetos, como um presente bem guardado”. Ouve-se o barulho do bombeamento, como insetos ou urubus que se alimentam da morte. Por uma ação externa demarcada – as etiquetas “glicose” e “morfina” sobre os tubos de plástico que socorrem as réplicas – parecem dizer: alguém insiste que resistamos.



Força


Em certo trecho de “Ensaio sobre a dádiva”, Mauss pergunta-se “Que força existe na coisa dada que faz com que o donatário a retribua?” (:188). Na troca-dádiva, o indivíduo renuncia a sua autonomia ao se dispor a dar e retribuir – o que Mauss chama de reciprocidade. O resultado material dessa obrigação é a troca de objetos, por isso a força que obriga a reciprocidade está investida não nas pessoas, mas nas coisas, matéria resultante das relações. A obrigação de retribuir é, portanto para Mauss, o resultado estético da troca.

Nuno Ramos questiona nesses trabalhos sobre a origem dessa força do objeto estético. A relação pretérita entre eles é trazida à tona através dos vídeos, que reabrem a história da troca. Baliza coisas disparatadas, elevadas como totens; que despencam, mudam de estado, mas persistem. Em Richard Serra, a força do objeto estético está no peso do aço das esculturas e do negro de seus desenhos, ambos abstratos; no caso de Nuno, está no objeto vulgar do mundo. As coisas solidificam nexos, estados e referências, possíveis apenas se conectadas pelo autor-artista – que precisa desses itens para produzir (ou retribuir) um outro, impregnado de estética.

Com isso, aproxima-se do limite da materialidade do mundo: a partir do exercício de colocar em relação objetos dispersos, produz um terceiro, uma força, decorrente de pares em perspectiva, os quais prescindem da existência de um terceiro – humano – para avaliar, categorizar e simbolizar essa relação. Dois agentes não-humanos, ou meio-humanos, como é o caso do pierrô, que, ao serem intercambiados, evidenciam o seu valor estético. Isso não passa pelo seu valor intrínseco, de troca nem de uso; é a própria noção de estética como estabelecimento de relações entre coisas materiais.

Nuno percorreu a origem dos objetos estéticos para alcançar o seu mana (termo melanésio que, em poucas palavras, significa a força dada pela honra ou autoridade): colocar coisas diferentes em relação. Nessa rede entre pessoas, artistas, linguagens, objetos e matérias se instaura o exercício da criação de uma nova materialidade, que não se valida pelo seu significado para explicar o mundo, mas como potência e emergência da matéria pulsante. Um trabalho de arte germina de uma exacerbação da força interna dos objetos e seus vínculos – o contrário da vertente que observa o seu valor na sua relação com discursos e temáticas do mundo[3].

Ao ler textos de antropólogos, Nuno é guiado pela intuição construtiva dos outros. Não se trata de “antropologizar” a arte com meras afinidades de forma ou de assunto. Essa literatura não é utilizada no texto, curatorial ou das referências artísticas – algo notado em exposições recentes no Brasil e no exterior[4] – mas como disparador de outra maneira de entender o objeto estético. A partir da leitura sobre a forma dos outros organizarem o mundo e a troca, Nuno reconstrói caminhos da arte ocidental, ao repensar a conexão e separação entre pessoas e coisas, inercia e intenção. A leitura de Mauss produziu um deslocamento real na maneira na qual Nuno compreende o poder dos objetos, de onde eles vêm e como podem ser acionados. Revelando o próprio potencial atravessador da Antropologia, que ao falar sobre os outros, expande os nossos limites de possibilidades de existência.

A exposição não coleciona modos de se fazer objetos, mas é afetada por esses textos no plano da materialidade. Diante de certa discursividade contemporânea, a arte de Nuno encontra na importância das coisas para os outros a possibilidade de potencializar a arte dos modernos[5]. Responde à suposta dicotomia entre entender o objeto como feixe de relações e a possibilidade de consistência plástica da arte, ao construir peças através do cruzamento entre pontos de vistas.

Os objetos surgem como consequência da retribuição de uma dádiva entre coisas nomeáveis, obrigação moral que aparece sob a forma plástica. A força do objeto estético é indissociável de sua posição no tecido das relações, redes e intencionalidades de obrigação recíproca. Mas é também material, pois decorre da experiência concreta entre pessoas e coisas. O objeto não é autônomo, tampouco aleatório, mas o seu valor e força derivam apenas da história de sua troca. Apesar de preexistente, ganha no exercício estético a potência de alterar o estado do mundo. E, ao ganhar nome, intenção e força, reivindica para si a agência reservada no ocidente apenas aos humanos.


Guilherme Giufrida,

antropológo, mestre em antropologia social pelo Museu Nacional – UFRJ, foi assistente de curadoria da 10a Bienal de Arquitetura de São Paulo.


Notas

[1] Marcel Mauss, “Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas”. Em: Sociologia e Antropologia. São Paulo: CosacNaify, 2003 [1923-24].

[2] Mauss introduz em sua análise o ritual do Potlach como forma por excelência de uma prestação total, isto é, obrigações mútuas entre coletividades através da troca. Troca-se não exclusivamente bens e riquezas, mas amabilidades, ritos, danças, festas. São prestações e contraprestações que, muitas vezes, podem vir sob a forma de rivalidade e antagonismo. Por exemplo, é muito comum no noroeste americano e na melanésia ocorrer a destruição suntuária das riquezas acumuladas para rivalizar com povos afins. Mauss identifica o revanchismo e as festanças contemporâneas como possíveis sobrevivências dessa destruição dos excedentes, debatendo a premissa acumulativa da economia política.

[3] Nuno defende a possibilidade da arte separada dos discursos sobre ela. Irrita-se profundamente com o que chama de “uma onda meio stalinista” presente no discurso curatorial contemporâneo, ligada a chamada “arte política”. Seus defensores propagam, segundo Nuno, “uma distinção radical entre quem acredita em valores como experiência estética, e quem acha isso absurdo, que a obra de arte tem que se inserir no mundo e dar conta de questões, que seria o pessoal mais faminto por arte contemporânea, para quem a arte tem de estar inserida e chama isso de política”. Para Nuno, “um discurso de esquerda anos 40, que não tem ambiguidade nenhuma, qualquer ambiguidade é mercado, estético. (…) A arte contemporânea ficou muito institucional, patrocinada, os artistas passaram a aceitar temas. Disso pode sair uma coisa legal. Mas está muito assim, discursivo nesse sentido. O artista está preso em discursos. É de uma imediatez política tamanha, como se o mundo fosse transparente (…) Hoje a arte sofre mais com uma antecedência discursiva do que com negócio de galeria. O que regula mais é o negócio discursivo, mais do que o mercadológico. Discurso curatorial que antecipa o que os artistas fazem”.

[4] Uma exceção importante à regra é a exposição Animism com curadoria Anselm Franke. Em “Animism: notes on an exhibition” comenta sobre seu interesse nos efeitos do animismo, registrado nas etnografias dos povos da América do Sul, sobre a concepção moderna de objeto. A sua intenção foi de observar nos trabalhos de arte contemporâneas como alguns artistas pensam objetos como pessoas (“person like”).

[5] Apesar de sua constante leitura de textos antropológicos, inclusive dos autores contemporâneos, recebe com certa crítica a condenação absoluta do moderno por parte de alguns. “Como se não tivesse Walter Benjamin, como se não houvesse Samuel Becket, como se a arte moderna não fosse o esplendor que é, e extremamente negativa. O modernismo é foda!”.